sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Ele estava Ali



Ele estava ali, do lado da bomba, enquanto pedi para o frentista abastecer. Chapéu de palha, roupa surrada, porém limpa. Na idade indefinida, as rugas de idade e sol, o bigode esbranquiçado, mas não totalmente, no estilo próprio do interior caipira.
Aproximou-se, perguntou se eu iria na BR no rumo de Brasília. Minha primeira reação, sempre, é reprimir a solidariedade e negar caronas. Infelizmente, as estradas são perigosas dentro e fora dos carros. Dei uma desculpa qualquer, iria sair da BR logo à frente, alguma coisa assim.
O olhar triste agradeceu. Aquilo me doeu fundo, um compatriota, sócio do mesmo país, unido a mim, por seus ancestrais, por 5 séculos na formação de um lugar que a gente se orgulhe e que tem nos machucado tanto por quebra de valores. Mais do que isso, um ser humano como eu. Não deu. Perguntei para onde ia, e ele me falou o lugar, uns 50 km adiante, no meu caminho. Havia perdido o horário e o próximo ônibus estava demorando.
Envergonhado, simulei uma ligação pelo celular perguntando ao interlocutor fantasma se era para eu passar em um lugar qualquer, imaginário. Na imaginação da resposta inexistente, então afirmei alto, para que ele ouvisse, que eu então iria direto pra Brasília, sem passar lá. Sem vergonha, representei tudo isso para não passar a vergonha de dizer-lhe que lhe tinha mentido antes.
Entrou, arrumou sua bolsa e seguimos viagem. Seu destino, um assentamento da reforma agrária, chamado P.A.Canaã, no município de Flores de Goiás.
Perguntei-lhe se estava lá havia muito tempo. Respondeu-me, com uma visível ponta de orgulho, que desde 2000, ia fazer 12 anos já. Que, desde então, nunca mais havia comprado um grão de arroz, de feijão, de milho ou uma raiz de mandioca. Tinha sempre um porco cevado, um frango no quintal. Leite, de suas poucas vaquinhas, 2 ou 3, que sua mulher gostava de fazer requeijão. Pra quem não sabe, o requeijão caipira é um tipo de queijo cozido.
Disse-me que vivia ele e a mulher, que fez muita farinha de mandioca que trocava o excedente por sal, alguma roupa. Remédios, pois a mulher estava doente nos últimos 2 anos, com algumas internações. Perguntei o que era, ele me falou anemia braba. Supus leucemia. Tinha ido comprar uns remédios pra ela, que tinha acabado. Orgulhosamente, me disse que estava melhor e que era raro o homem que conseguia acompanhá-la numa enxada. Ele próprio só fazia pra não perder a moral. Até hoje.
A idade? A dele, 68 anos, me disse; não perguntei a dela.
No correr do asfalto, com seu sotaque de grande sertão veredas, me falou de seus orgulhos. Nasceu na beira da mata, próximo a Suçuapara, no sertão do município de Cocos, Bahia. Aprendeu a manejar a enxada, tratar bicheira e matar cascavel ainda pequeno, um dos 11 irmãos sobreviventes dos 19 que haviam nasceram. Aos 15, conheceu Erondina, que tinha 11. Um ano depois se casaram e construíram suas vidas juntos. Ler, nunca aprendeu, mas sabe desenhar o nome. Não fez falta, enxada não tem manual de instruções.
Em 1971, vida dura, veio arriscar em Goiás, nos campos gerais. Primeiro, Mambaí, depois, Sítio d’Abadia. Posse, Alvorada do Norte, Iaciara e Flores de Goiás fizeram parte de seu polígono de lida. Batendo pasto, fazendo roça, cuidando de gado. Conseguiu comprar uma bicicleta e ocupou um lote próximo a um posto de gasolina na BR, em nascente corrutela chamada Santa Maria, nome do posto.
Nasceram 6 filhos, 4 sobreviveram a infância, hoje restam 3. A mais velha, com 50 anos, disse-me ele – coitada, tá com um tumor na cabeça, dô fé que num vai conhecê seu neto. Explorando, foi operada em setembro passado de câncer no cérebro e, após ligeira melhora, generalizou-se. Está em estado terminal numa cidade próxima – Formosa – mas ele faz questão de vê-la toda semana.
O filho caçula dos vivos mora em Brasília, estudou, quase dotô segundo ele. Trabalha como mecânico. A neta mais velha está na faculdade. O orgulho rolou pelas faces do velho em forma de lágrimas. De alegria.
A filha do meio, casada com um peão e cachaceiro, vive meio sem rumo e tem um “pobrema no útro”. Pelo que me falou, deduzo que algum mioma ou coisa assim. Já tentou que largasse o pinguço que lhe deixa os olhos roxos e braços arranhados e volte pra casa, mas quem manda em seu coração, disse-me ele. E, concordei.
E, contando suas histórias, me disse que esse lote foi a melhor coisa da vida dele, que nem ele e a mulher gostam de passar uma noite sequer longe do pé da serra, de sua roça, de suas galinhas. Luz, já tem, instalada há 3 anos, melhorou muito pra ele, antes é que era difícil pra até irrigar sua horta. Conseguiu pôr água encanada em casa, até banheiro tem, eles que estavam acostumados a visitar o mato. E que Deus havia sido muito bom com ele com sua velha, eles só tinham o que agradecer, mesmo nas dificuldades que passavam. Mas quem não tem tempo difíceis, né, disse ele, confortando a mim mesmo, sem o saber.
Estávamos chegando, mas eu tirei o pé do acelerador, que a viagem levasse 10 horas que fosse. Queria continuar absorvendo a sabedoria de nossa gente. Gente que nunca ouviu falar em Platão, vê um centro de consumo e jactância inútil, como um shopping, da mesma forma fosse uma base extra-terrestre. Que não sabe o que é morar num edifício, que não se sente inferior se não trocar de carro todo ano nem possuir o celular mais moderno. Gente que sabe agradecer, como somos nós quando não contaminados pelo orgulho, pela vaidade, pela aparência, pelo ter.
Chegamos, parei na BR, ele insistiu que não precisava levar-lhe os 3 km faltantes até chegar em sua casa. É um passeio, disse-me, tem passarinho, tem flô no caminho, tem árvi bunita. Ele continuava vendo beleza onde eu só via o sol inclemente das 3 da tarde, mutucas e mosquitos.
Perguntou-me quanto era, como de hábito na região. Disse-lhe que nada (eu é que deveria pagar-lhe pelas lições, mas nem me arrisquei a dizer isso). Ele disse que não, que se ele viesse de ônibus teria que pagar. Repeti que nada me devia, que tinha sido um prazer.
Olhou-me, sem acreditar, mas tirou dinheiro do bolso e disse que o ônibus teria cobrado R$ 8,00, então ele insistia.
Pra não ofender, disse então que me desse R$ 2,00 (vi que ele tinha uma nota de 2 no bolinho que tirou). Então, ele passou a de 2 e pôs uma de 5 em minha mão, dizendo que pra ele além de mais barato, tinha viajado mais confortável e aprendido umas coisas comigo. Eu havia dito pra ele que desse couve e fígado com feijão pra mulher, essa foi a lição que referiu.
Aceitei em respeito à sua dignidade. Deixei-o à beira do asfalto, com um abano de minha parte e um altivo cumprimento de chapéu dele.
E fui pensando. Mais uns 50 km à frente, parei em outro posto de gasolina, entrei, pedi um refrigerante e um pastel e fiz um brinde interno. Brinde à nossa gente, ao nosso brasileiro não contaminado pelo supérfluo. Brinde à minha felicidade de conhecer gente assim. À minha alegria de ser conterrâneo e contemporâneo de sábios que a civilização despreza.
Fiz questão de pagar o brinde com a mesma nota de R$ 5 que me deu.
E o bom orgulho inundou a minha alma.



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